A Paixão e o Teatro de Cecílio Sá: crônica


Ester Marques

(Mestra em Comunicação e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB))


"O que mais me emociona no teatro é quando um ator consegue arrancar lágrimas de um espectador. Fazer rir é muito fácil, mas fazer chorar exige do ator e do espectador uma relação de cumplicidade que ninguém quebra"...
Cecílio Sá

"O teatro é o supra-sumo da arte; é a arte maior, depois da música e da pintura, porque força a expressão máxima do sujeito, que é o que define a sua sensibilidade, que provoca o choro, que desperta a alegria"
Cecílio Sá

A inauguração do Memorial Cecílio Sá, aberto ao público no dia 20 de julho deste ano, com a participação de familiares, representantes do poder público, artistas, jornalistas e pessoas da comunidade, simbolizou mais uma etapa do trabalho de uma vida dedicada ao teatro popular maranhense. Pensado e organizado pessoalmente por Cecílio Sá, o memorial expressa o conjunto da obra que foi desenvolvida em 70 anos de carreira, através da realização de peças religiosas, comédias, dramas e paródias. O memorial, localizado à rua Cândido Ribeiro, 911, na Fonte do Bispo, é composto por alas independentes, sendo a primeira dedicada à memória familiar e a segunda composta por móveis de estilo produzidos pelo marceneiro Cecílio, assim como dos adereços confeccionados para as peças de teatro.

A paixão pelo teatro começou cedo, aos 17 ou 18 anos, quase por acaso. Um acaso bem vindo para Cecílio Sá (Este texto é resultado de uma releitura dos livros Memórias de Velhos: uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense (1997); No palco a paixão Cecílio Sá: 50 anos de teatro (1988) e depoimentos dados pelo próprio autor.), fruto do gosto pelo cinema mudo, pelas comédias do teatro São José, da Igreja do Carmo, e pelas operetas de teatro de Maria Lino e Vicente Celestino, que passavam regularmente pelo Maranhão na década de 30. É verdade que o seu gosto pela arte popular começa mais cedo, em 1919, quando vem de Alcântara (Fruto de uma família de 12 irmãos desmembrada desde a sua origem pela pobreza, Cecílio foi um dos últimos filhos de Armindo Freitas de Sá e de Raimunda Nogueira de Sá e já nasceu em Alcântara, em 01 de fevereiro de 1913, depois que o pai veio do Amazonas como seringueiro contratado pela empresa Alcobaça. Em São Luís, ele ficou aos cuidados da família de Gaudêncio Cunha, primeiro fotógrafo profissional do Maranhão e proprietário da Fotografia União.) para São Luís estudar na Escola de Aprendizes e Artífices (A Escola de Aprendizes e Artífices funcionou onde hoje está localizada a sede do Ministério da Agricultura. Nessa escola, as crianças carentes de São Luís aprendiam os ofícios de sapateiro, alfaiate, mecânico, ferreiro e músico, sob a responsabilidade de professores como Urbano Franco, Zoé Cerveira, Raimunda Cerveira, João Gualberto, Ambrósio Guimarães, Teófilo Marcelino de Moraes Rego, Espírito Santo, João Rios e o mestre Eduardo Marques. (Sá 1997:28)) do Diamante, para crianças carentes. Lá, estuda música nas horas vagas para comemorar o Centenário da Independência, em 1922, mas é o ensino do português e da pedagogia, pela manhã, e o ofício de marceneiro, à tarde, que o fazem sonhar com um futuro melhor.

De 1921 a 1926, Cecílio Sá aprende o ofício de marceneiro, mas a dificuldade de sobrevivência leva-o a abandonar a escola e a procurar trabalho numa oficina, onde apura o gosto e o estilo pelos móveis clássicos e pelos adereços que faz para o teatro. "Depois do trabalho, eu aproveitava as folgas para ir ao teatro com Artur Paixão de Araújo, que era porteiro do Arthur Azevedo e que era conhecido lá de casa. Eu sempre assistia as peças da varanda de cima porque os camarotes e as poltronas, que ficavam em baixo, eram para a elite. A varanda era o meu camarote e eu entrava de graça porque era amigo do porteiro", diz.

Enquanto o Brasil redefine os seus conceitos de cultura erudita e popular, resultado do movimento modernista de Anita Mafalti, Oswald e Mário de Andrade, efeito mais direto da Semana de Arte Moderna, o Maranhão desenvolve um movimento de teatro amador com peças encenadas pelos grupos Thália, Talma e pelo corpo cênico São José, considerados grupos de elite porque contavam com atores de categorias profissionais mais organizadas. A efervescência desse movimento contagia Cecílio da mesma forma que as manifestações populares - Pastoral, Festa do Divino, Bumba-meu-boi, Brincadeiras de Carnaval e Reisados -, que ele assiste no Largo de São Sebastião, próximo à Casa das Minas, ou no Largo da Madre Deus.

Assim é que, durante um encontro com os amigos Pedro Silva, José Cardoso, Lino Sousa e José Silva (Zé Igarapé), em 1931, Cecílio propõe a criação do Grupo de Teatro Ateniense, em homenagem às tradições culturais do Maranhão, cujas características principais era ser formado por pessoas de profissões mais modestas, como pescadores, marceneiros e tecelões, e também por não contar com o mecenato de ninguém, nem de nenhuma instituição. "O nosso teatro começou com uma brincadeira, mas depois virou mesmo obrigação. Naquela época, o teatro fazia parte do cotidiano das pessoas porque não havia outros meios de diversão como a televisão por exemplo", analisa Cecílio para ressaltar que fazer teatro amador equivalia a ir de casa em casa convidar os artistas, a vender os ingressos, a fazer todo o trabalho de direção, cenografia, iluminação e som. Criar um grupo de teatro equivalia a trabalhar com o novo em cada peça, com o inédito em cada personagem, com a improvisação de cada adereço, com a surpresa das cenas incompletas (Dentre as muitas histórias engraçadas contadas por Cecílio, uma é especialmente cômica. Durante a apresentação da peça O Mártir do Calvário, de Eduardo Garrido, com Raimundo Mendes, havia a cena de uma ceia que precisava de vinho. Cena pronta, cadê o vinho? Não havia vinho... Raimundo Mendes foi à casa dele e juntou numa garrafa todo tipo de água preta, de iodo a café, e trouxe para o palco. - Taqui o vinho! Quando o vinho foi chegando na mesa, eu dei a pancada e o pano abriu e o pessoal todo ali... Ah, desse pão comei, bebei... E na hora de bebei, ah rapaz! Quase todo mundo estava fazendo cara feia... Aí eu disse: - Meu Deus! O que está acontecendo? Eu fiquei naquele cativeiro, não sabia de nada. Aí o rapaz que fazia o Cristo saiu e disse: - Fecha o pano. Aí eu fechei o pano e disse: - O que foi? E o rapaz falou: Esse desgraçado veio dar iodo, pra gente, água de café, todo o diabo". (Velhos, 1997:52)), com o aplauso tão aguardado do público.

Criado o grupo, faltava o autor, o espaço e a peça certa para encenar. Foi então chamado Bibi Geraldino, pseudônimo de Benedito Amâncio de Sousa, autor já conhecido por suas brincadeiras de carnaval, para escrever a primeira peça denominada Natal no Sertão. O local escolhido foi a varanda da casa de Leandro Moraes - um incentivador da cultura popular maranhense -, em cujo espaço se apresentavam Festa do Divino, Bumba-meu-boi, São Gonçalo, Reisado, Quadrilhas e Danças do Coco. O palco, feito pelo próprio Cecílio, foi montado na varanda da casa com sarrafos, tábuas de caixote, tampas de mala, fundos de gaveta e coberto com fazendas, enquanto os artistas foram recrutados no próprio grupo e nas brincadeiras de carnaval. Pronto! Estava criado o teatro de canto de rua de Cecílio Sá, com sua natureza folclórico-religiosa, sua reverência pela dramaturgia cristã e sua ludicidade permanente, especificidades marcantes de uma obra que já faz parte da memória longa da cultura maranhense há 70 anos.
Teatro e Imaginário
O resultado desse trabalho surpreende pela criatividade e imaginação. Para Cecílio, arte é criar uma coisa na imaginação a partir de um simples objeto e depois torná-lo notável. Foi assim desde a primeira peça, dirigida um pouco por toda a equipe, mas coordenada principalmente pelo seu entusiasmo.
"Eu era o mais assanhado apesar de ser o menor (mais novo) da turma com 17, 18 anos. Mas era quem liderava o pessoal, nada era feito sem a minha presença. Eu fazia tudo, desde o primeiro prego até a última tábua. A gente fazia o palco de tampa de mala, de caixão de batata".
O ponto forte do teatro lúdico-popular de Cecílio primava pela estética visual e pela capacidade de adaptação de cada ator ao personagem e, isso era levado tão a sério que o grupo deixou de encenar uma peça sobre bruxas porque não conseguiu achar ninguém com as características adequadas em toda a ilha de São Luís.

A fórmula do sucesso era simples: boa interpretação, boa visualização e bons materiais, o que rendia, obviamente, bons espectadores. Assim foi desde o início. A varanda-palco da casa de Leandro não comportou o número de espectadores e o grupo teve que se mudar para a casa de Miguel Graciliano da Costa, na rua de São Pantaleão, em frente ao Beco das Minas, para encenar a segunda peça de Bibi Geraldino, Matutos em Belém, uma sátira-comédia sobre o pastor natalino. Outro sucesso com casa cheia e ingresso cobrado a dois mil réis. O entusiasmo do grupo e do seu autor principal desequilibram a relação harmoniosa que existia, até então, entre criador e criatura. "Bibi era um bocado sabido e muito vivo (inteligente) também. Ele escrevia, pintava, ensaiava e sabia ganhar dinheiro. Cobrava 25 mil réis por cada peça, além da participação que tinha sobre todo o movimento do teatro", lembra Cecílio para justificar a saída do autor para o grupo rival Minerva, após um desentendimento.

Sem autor preferido, o jeito foi buscar alternativas em outras moradias. O escolhido foi o português Eduardo Garrido e sua peça O Mártir do Calvário, encenada pela primeira vez em 2 de novembro de 1919, no Rio de Janeiro, no Teatro Santa Isabel, e reencenada por Cecílio em 1932, ao mesmo tempo em que Bibi Geraldino escrevia e encenava a peça o Rabi da Galiléia para dividir platéia, ingressos e preferência popular. Cecílio Sá foi à procura do ator Manoel Pinto da Costa, do extinto grupo Talma, para ajudar a encenar a peça que foi um sucesso estrondoso de público a tal ponto que, segundo conta Cecílio, a porta da casa foi arrancada, os espectadores brigavam por um ingresso, enquanto esperavam em filas imensas para entrar no teatro. Assim, em vez de um dia, a peça foi apresentada todos os dias da Semana Santa, tornando-se o principal sucesso de carreira e de bilheteria de Cecílio Sá (Conforme consta do livro No palco a paixão de Cecílio Sá: 50 anos de teatro, de Lenita Sá, o sucesso alcançado pela peça O Mártir do Calvário acabou acirrando a concorrência entre o grupo de Cecílio e os outros grupos existentes em São Luís. A maior era entre Cecílio e Raimundo Ramos (Filú), que trabalhou no grupo Ateniense por alguns anos representando o Cristo até que saiu para criar o seu próprio grupo e apresentar suas peças no teatro da igreja de São Pantaleão. Ambos não mediam esforços no sentido de suplantar o outro em espionagem, luxo e platéia. «O vitorioso seria aquele que, durante a Semana Santa, desse mais sessões, com cenários mais bonitos e roupagem mais rica. Levavam em conta o melhor Cristo, o melhor Pilatos, a melhor Maria, a melhor Madalena. Os comentários duravam semanas» (Sá 1988:26). Esse mesmo grupo acabou montando as peças Moleque de Pensão; Coração quando começa a alvorecer e Menino-Rei, de autoria do ator Manoel Pinto da Costa, até que se desfez e Cecílio foi viver em Caxias.

No entanto, o destino de Cecílio estava traçado. Na década de 40, em Caxias, voltou a encenar O Mártir do Calvário, no teatro Phoenix, com 16 atores e 12 músicos, cujo sucesso fez com que decidisse voltar para São Luís e reencenasse Matutos em Belém. O sucesso mediano dessa encenação fez com que resolvesse reapresentar o Mártir do Calvário em São Luís, dos bairros do Tirirical ao Monte Castelo, da Cohab ao João Paulo, do Lira ao Anil, de Rosário ao São Francisco, em teatros, cinemas, escolas, casas e portas de rua, onde fosse possível montar o palco, organizar os cenários e recrutar os atores. "Cecílio tinha uma espécie de caderno manuscrito e, diante da sua surdez, repetia as falas e as decorávamos. E, como já era, de certa forma, tradição, todo mundo trazia mais ou menos de cabeça a estrutura rimada, além de ir aprendendo um do outro... A maneira dele dirigir era conduzir o ator à repetição dos gestos, uma coisa muito engraçada se se olhar pelo prisma da direção convencional, quer dizer, o diretor estimulava o ator a repetir os gestos previamente ensaiados pelo primeiro", avalia Tácito Borralho que trabalhou com Cecílio em várias montagens.

A compulsão de dirigir era maior do que Cecílio e não havia dificuldades que o fizessem desistir do teatro, pouco ou nada importando a formação profissional, ideológica, cultural ou teatral dos atores. "O bom da dramaturgia é que mesmo quando não tem quem ajude, quando não há dinheiro, quando os atores não possuem formação, a paixão de fazer o teatro acontecer é maior. Quem quer fazer, faz", define o autor para quem o mais importante do teatro é ver gente na platéia, porque se isso acontece é porque o trabalho agradou. Assim, a década de 50 marca o início de uma produção que nunca mais pararia. Em 1953, Cecílio Sá tornou-se diretor do Grupo Teatral Artur Azevedo, constituído por Mauro e Jandir Monteiro. Com esse grupo, Cecílio produziu as peças O Testa de Ferro, de Raimundo Magalhães Júnior; Lady Godiva, de Guilherme de Figueiredo; A vida tem três andares, de Humberto Cunha e Amor por Anexins, de Arthur Azevedo.

Desfeito o grupo, Cecílio Sá partiu à procura de um novo parceiro e o encontrou em Francisco Costa, que se tornou seu compadre. O primeiro trabalho conjunto, Milagres de Nossa Senhora de Fátima, escrito por causa da passagem da Santa em São Luís, revelou-se um sucesso monumental em função dos truques cênicos inventados por Cecílio, que se esmerou na organização do som, da iluminação e do cenário. O espetáculo foi apresentado 13 vezes no teatro da igreja de São Pantaleão, no Cine Monte Castelo e no Teatro Arthur Azevedo, estimulando a criação de um novo grupo amador: o Renascença. De 1958 a 1966, o grupo apresentou, além da peça já citada, O Mártir do Calvário, de Eduardo Garrido; Um momento na vida, de Fernando Moreira; O homem que voltou do passado, de Carlos Alberto Minuto; Julgai-me senhores, de Sandoval Wanderley; O Rei dos Judeus, de Francisco Costa; Chuvas de Verão, de Luís Iglesias e O Rabi de Nazaré, de Francisco Costa e Cecílio Sá.

Mais uma vez só, Cecílio passou a recrutar gente das comunidades, criando, em 1977, o GRUTAM - Grupo Teatro Recreativo Amador do Maranhão, e reencenando peças como Natal no Sertão, Natal de Jesus, Paixão de Cristo, O Mártir do Calvário, O Rei dos Judeus e O Rabi de Nazaré. De lá para cá, continuou fazendo pequenas peças e colaborando com montagens coletivas a exemplo de O Mártir do Calvário feita pelo Laborarte em 1973. A sua experiência de martirólogo, como alguns o denominam, influenciou gerações de atores e autores do porte de Lima Filho, Nunes Falcão, Gervásio Lima, Bibi Geraldino, Lauro Guaianaz, José Cardoso, Felipe Rodrigues da Silva, Pedro Silva, Raimundo Ramos, Carlos Cárdenas, Benevenuto Teixeira, Pedro Silva, Dalmir Pereira, Wilson Barros, Iracy Silva, Ivonete Sousa, Jandir Monteiro, Tácito Borralho, Douglas Cunha, Aldo Leite, Mariléa Ferreira, Reinaldo Faray, Regina Telles, Jorge Botão, Carlos Correa, Ubiratan Teixeira, Lili Sá e Ester Marques a amar o teatro como parte do mundo simbólico da vida.

Aos 88 anos, lúcido, atencioso e atento a todos os gestos e a todas as perguntas, Cecílio Sá continua à procura de novos parceiros para viver eternamente a sua paixão: pela vida, pelas pessoas, pelo teatro, pelo amor. O único requisito exigido pelo autor é não ser profissional de coisa nenhuma a não ser da vida, é amar o teatro acima de todas as artes, é saber apaixonar-se sem medir consequências. Alguém se habilita?

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